Alguns dirão que não sou mais do que um tipo ressabiado e de mal com a vida profissional em geral e com as entidades empregadoras em particular… pois talvez seja, mas sinto que estamos a voltar atrás no tempo e no progresso e que estamos cada vez mais a caminhar para uma escravatura dos tempos modernos.
Nos tempos que correm “parece que os empregos não abundam", mas, neste cenário e para além dos vínculos ditos precários, existem outros que olhados a pente fino roçam a aberração.
Neste sentido, as Organizações contemplam-nos hoje em dia com “regalias” que nos fazem cair na tentação de dar cada vez mais no trabalho, de ser cada vez menos o que mais deveríamos ser: Pais, Irmãos e Amigos presentes, Cidadãos informados e conscientes, Humanos…
Muitas organizações oferecem-nos Seguros de Saúde, Seguros de Vida, Prémios e outros benefícios para dar e vender, mas, no que toca ao que damos em troca, estamos, sem eufemismos, a tornar-nos, cada vez mais, burros de carga.
No início, no processo de recrutamento que orgulhosamente redunda na nossa contratação, somos animados por um manancial de “iguarias socioprofissionais” que nos fazem salivar, em jeito de reflexo Pavloviano, e querer, diria até ter de, agarrar a oportunidade.
E então, começa um Tango dançado a dois, em que a sensualidade se transforma em enfado e um dos dançarinos carrega o outro às costas.
No primeiro passo desta dança, dizem-nos: “Ora dá cá os dois braços que já é hora de começar a carregar”. E nós, cheios de ânimo e peito cheio de orgulho pensamos: “Toca a arregaçar as mangas, porque vim para trabalhar e a paga no final é bem boa”.
Num segundo momento, e já sem a deferência do pedir por favor, ordenam-nos de forma dissimulada que nos coloquemos de gatas enquanto “carinhosamente” nos colocam uns alforges no lombo.
Quando damos por ela, transformámo-nos em quadrúpedes que, quais bestas de carga, alancam com um par de alforges carregados até ao topo. Mas assim vamos, caminhando e alombando, porque afinal a mesada é boa.
Eis senão quando, o segundo bailarino observa com precisão matemática que “existe um desperdício óbvio de recursos que importa aproveitar; o burro de carga tem a cabeça a apanhar ar e, como não queremos que se constipe, nada melhor do que colocar-lhe um cesto na cabeça”. E como um cesto vazio corre o risco de se desequilibrar e cair, nada melhor do que carregá-lo mais um pouco, porque afinal o burro aguenta.
Olhamos então para nós e chegamos à conclusão que, a troco do salário e dos benefícios que o enfeitam, estamos a carregar mais do que é humanamente possível e do que racionalmente deveria ser exigível.
Mas não importa: a cenoura que nos colocam à frente é saborosa, é tão tentadora como a maçã do Éden, é tão cheia de encantos que nos faz esquecer o desencanto das chibatadas com que nos fazem avançar… vergados, desgastados e deprimidos.
Olhando de fora, com um rasgo de sobriedade e de alienação perante esta rotina trituradora de almas, há que pesar os prós e os contras e, se calhar, perceber que o Seguro de Vida dará jeito apenas a quem cá fica, porque a este ritmo morreremos cedo; o Seguro de Saúde será útil (caso a companhia de seguros não se corte) para corrigir as maleitas de esticar o corpo ao limite; e quanto aos restantes benefícios, farão as delícias de quem ainda conseguir ter tempo e energia para os gozar.
Em suma, e fora do êxtase de ganhar e ter mais dê por onde der, acabamos por compreender que o emprego seguro, a tábua de salvação que nos mantém a flutuar, não é mais do que o lastro que nos faz ir cada vez mais ao fundo… para um lugar onde não queremos ir; um lugar do qual, em muitos casos, já não conseguimos sair.